Precisei levar minha mãe pra fazer uns exames de vista em Niterói. Chovia muito o dia inteiro e fomos de Icaraí para o Fonseca de ônibus. Na volta, no banco em frente ao nosso, aquele que fica perto da porta, estava uma senhora idosa, com cara de evangélica conservadora, magra, de óculos, e doida! Doida, doida! E também maravilhosa! Falava alto, falava com o motorista e com quem quisesse prestar atenção. Entre outras coisas, disse assim: “— Motorista, quer uma bala pra arder a garganta?”. Aos poucos, percebi, pela conversa, que ela aproveitava o passe-livre e ficava parte do dia rodando de ônibus ali, naquele banco de um só. Virou para um menino que estava sentado do outro lado, para o qual também tinha oferecido a tal da bala que ardia, e disse: “— O negócio é andar de ônibus pra ver a vida passar. (...) A vida é só uma, que Deus deu pra gente. Deus só deu essa! É uma só! Tem duas não! E se tiver ... essa é a pior!“
Me diverti muito até o fim da viagem e não sei porque lembrei da querida Heloneida Studart, que era minha ilustríssima vizinha de coluna no portal Sobretudo, e que nos deixou no final de 2007. Heloneida não tinha nada de doida, mas tinha aquele jeito peculiar de contar as coisas que só uma nordestina feminista inteligente como ela sabia fazer. Ouvi Heloneida na década de 70, quando participava do programa de rádio da Cidinha Campos e depois a vi pela primeira vez na década de 80, no Sem Censura, da TVE. Sabia mais ou menos de sua importância na defesa das questões da mulher na Assembléia Legislativa, mas gostava mesmo era de sua doce franqueza ao falar. Um dia, acabei sendo indicado para criar alguns cartazes de seu mandato e passei a frequentar, todo bobo, o seu gabinete. Numa tarde, estava lá esperando o serviço e a ouvi dizer para uma assessora: “— Fulana, e aquele meu sofá, quando chega? Ando tão cansada!” Do jeitinho que ela falou, quase que desci ali na Praça XV pra procurar um sofá que servisse. Minha guerreira mal me conhecia, mas eu já sabia dela há muito tempo.
Quando eu era pequeno, morávamos em Belford Roxo e minha mãe me levou num médico, em Magalhães Bastos, de trem. Na volta, o trem avariou e tivemos que descer numa estação para esperar. Quando ele voltou a funcionar, todos entraram de novo, mas nós, não. Não entendi bem aquilo, eu só tinha quatro anos. Tentei avisar minha mãe, mas ela estava desligada de tudo, distraída, e perdemos o trem. Quando ela se deu conta, fiquei sabendo que era o último trem daquele dia e que não tínhamos dinheiro para voltar de ônibus. Pela primeira vez vi minha mãe chorar. Saímos da estação sem rumo e, entre soluços, ela contou o acontecido para um guarda de trânsito, que lhe deu o dinheiro da passagem. Como é que alguém que sabia fazer tanta coisa em casa, com seis filhos, tão guerreira, podia ficar ali tão sem chão? Naquele dia aprendi o significado da palavra angústia.
Oscar Niemeyer fez 100 anos outro dia e vi ele dizendo, na televisão: “— A vida passa em um minuto. A gente vem aqui, conta uma história e vai embora.”