sexta-feira, 26 de junho de 2020

A vida passa em um minuto

Precisei levar minha mãe pra fazer uns exames de vista em Niterói.  Chovia muito o dia inteiro e fomos de Icaraí para o Fonseca de ônibus.  Na volta, no banco em frente ao nosso, aquele que fica perto da porta, estava uma senhora idosa, com cara de evangélica conservadora, magra, de óculos, e doida!  Doida, doida! E também maravilhosa! Falava alto, falava com o motorista e com quem quisesse prestar atenção.  Entre outras coisas, disse assim: “— Motorista, quer uma bala pra arder a garganta?”.  Aos poucos, percebi, pela conversa, que ela aproveitava o passe-livre e ficava parte do dia rodando de ônibus ali, naquele banco de um só.  Virou para um menino que estava sentado do outro lado, para o qual também tinha oferecido a tal da bala que ardia, e disse: “— O negócio é andar de ônibus pra ver a vida passar. (...) A vida é só uma, que Deus deu pra gente. Deus só deu essa! É uma só! Tem duas não! E se tiver ... essa é a pior!“

Me diverti muito até o fim da viagem e não sei porque lembrei da querida Heloneida Studart, que era minha ilustríssima vizinha de coluna no portal Sobretudo, e que nos deixou no final de 2007.  Heloneida não tinha nada de doida, mas tinha aquele jeito peculiar de contar as coisas que só uma nordestina feminista inteligente como ela sabia fazer.  Ouvi Heloneida na década de 70, quando participava do programa de rádio da Cidinha Campos e depois a vi pela primeira vez na década de 80, no Sem Censura, da TVE. Sabia mais ou menos de sua importância na defesa das questões da mulher na Assembléia Legislativa, mas gostava mesmo era de sua doce franqueza ao falar.  Um dia, acabei sendo indicado para criar alguns cartazes de seu mandato e passei a frequentar, todo bobo, o seu gabinete. Numa tarde, estava lá esperando o serviço e a ouvi dizer para uma assessora: “— Fulana, e aquele meu sofá, quando chega?  Ando tão cansada!”  Do jeitinho que ela falou, quase que desci ali na Praça XV pra procurar um sofá que servisse. Minha guerreira mal me conhecia, mas eu já sabia dela há muito tempo.  

Quando eu era pequeno, morávamos em Belford Roxo e minha mãe me levou num médico, em Magalhães Bastos, de trem.  Na volta, o trem avariou e tivemos que descer numa estação para esperar.  Quando ele voltou a funcionar, todos entraram de novo, mas nós, não.  Não entendi bem aquilo, eu só tinha quatro anos. Tentei avisar minha mãe, mas ela estava desligada de tudo, distraída, e perdemos o trem.  Quando ela se deu conta, fiquei sabendo que era o último trem daquele dia e que não tínhamos dinheiro para voltar de ônibus.  Pela primeira vez vi minha mãe chorar. Saímos da estação sem rumo e, entre soluços, ela contou o acontecido para um guarda de trânsito, que lhe deu o dinheiro da passagem. Como é que alguém que sabia fazer tanta coisa em casa, com seis filhos, tão guerreira, podia ficar ali tão sem chão? Naquele dia aprendi o significado da palavra angústia.

Oscar Niemeyer fez 100 anos outro dia e vi ele dizendo, na televisão: “— A vida passa em um minuto.  A gente vem aqui, conta uma história e vai embora.” 

quinta-feira, 7 de julho de 2016

O pão e os brioches

Sou descendente de nobres. 

Pode estar fora de moda, mas o fato é que sou descendente de nobres.
Apesar de minha mãe ter comido o pão que o diabo amassou no subúrbio de Rocha Miranda e meu pai ter sido peão da fronteira, no Sul, há rumores de parentes nobres distantes dos dois lados e até um tal castelo de Beaufort em Luxemburgo que um tio pobre dizia que era herdeiro por conta, talvez, da descendência direta francesa de nossa familia Belfort.


Títulos de nobreza eram concedidos, no Brasil, pela coroa portuguesa. A coroa portuguesa não é aquela senhora, mulher do dono da padaria, mas tal qual, era muito respeitada. Os títulos eram concedidos por hereditariedade ou por merecimento. Mereciam o título nobiliário em vida aqueles que se destacavam por seus feitos e virtudes.  Isto é quase verdade.  O fato é que muitos conseguiam os títulos por terem mais posses, poder de influência, esperteza ou por estarem incomodando muito a coroa, sendo poderosos.
Igual a hoje.
A senhora, esposa do dono da padaria, talvez tenha origem mais humilde, mas, com certeza, mais virtudes que muitas cortes imperiais.
Os nobres da atualidade andam em carros possantes e alguns param para comprar pão na padaria chique e famosa que fica embaixo da minha janela.  Com um som caro e estupidamente alto, tocando música invariavelmente de péssimo gosto, são tão arrogantes quanto eu.  Alguns têm “diproma” de faculdade, outros nem o primeiro grau, mas, na prática, são todos iletrados.
Não percebo, ali, nenhum traço de nobreza, que fosse bravura ou honestidade. De grande, só vejo a marra e a esperteza aliadas à falta de educação.
Do alto da minha janela, e esta seja talvez a única alteza que tenha me restado, olho pra baixo e me pergunto: Meu Deus, que gente é essa que vem aqui embaixo para se entupir de pão? 


As imagens acima são, respectivamente, Maria Antonieta e a guilhotina. Nesta ordem, de preferência.

domingo, 10 de agosto de 2014

Eu vi o velho

Eu vi o velho

(ou Como vovô viu a uva)


Festa na casa da minha tia em Shangrilá. Eu tinha quatro anos e estava com meus primos brincando dentro da Rural do meu tio, na frente da casa. De repente, eles me disseram que o Velho do Saco estava vindo na esquina, me pegar. Me trancaram no carro e foram embora. Não é que o Velho do Saco vinha mesmo?! Todo sujo, carregando um saco de estopa naquela rua escura e vazia. Gritei, gritei, gritei tanto que mesmo com os vidros fechados e com o barulho da festa correndo solta lá dentro, todos vieram me acudir. Acho que até o mendigo que arrastava aquele saco se assustou. Meu pai me pegou e eu me acalmei. Afinal, estando com meu pai, que velho iria se atrever a chegar perto de mim?



Meu pai era o cara, sabia tudo, plantava, criava bichos, sabia juntar um tijolo com outro, tinha serrote, espingarda e era do Exército. Qualquer problema no bairro, podia ser de madrugada, lá vinha alguém no portão e gritava: “Seu Chagas! Seu Chagas!”

Uma vez, quando não sei o quê explodiu em Duque de Caxias, as pessoas foram parar a pé em Belford Roxo, andando pela rua. E lá em casa virou uma enfermaria, dizem meus irmãos.

Depois que ele saiu de casa, de vez em quando, minha mãe me levava no quartel e a gente passava o dia lá com ele. Foi num desses dias, de tarde, com a luz do sol entrando atravessada no quarto escuro do rancho onde ele ficava pra cuidar dos cavalos, que percebi umas rugas que ele tinha na testa e os pés-de-galinha em volta dos olhos. Eu pensava: Como é que ele deixou isso acontecer? Comigo não vai ser assim. Quando minha testa começar a dobrar vou esticar com a mão e impedir que fique marcada.

A última vez que vi meu velho ele já estava muito velho, ao lado de sua última esposa, e eu me indispus com ele por que insistia em propor uma negociação de divórcio furada para minha mãe. Acho que fui o único filho do Seu Chagas a ter coragem de enfrentá-lo desta maneira. A gente ficou de mal e nunca mais nos vimos. Isso foi há mais de 15 anos.

Outro dia o encontrei de novo. Foi de repente. As mesmas rugas na testa, os mesmos pés-de-galinha, o mesmo bigodão. O mesmo.

Quando ele começou a aparecer, fiquei preocupado com seu futuro e passei a pagar um plano de previdência. Fazia tempo que a gente não se via e era bom nos ver de novo.

Agora a gente se vê todos os dias, pela manhã, quando faço minha barba no banheiro e paro na frente do espelho.

sábado, 19 de outubro de 2013

Quero um botão de verdade


Sou do tempo em que tudo girava. O mundo girava, a roda girava, os botões dos equipamentos giravam. De vez em quando, ainda faziam um clique. E era só.  Botão multifunção só nos relógios de pulso e nos rádios de carro que podiam, além de girar, ser empurrados ou puxados. 
 

Passamos por um período em que tudo era deslizante; não deu muito certo.  Depois, resolveram que um único botão apertado poderia fazer várias funções. Muito chato e complicado.

 
Agora, é um tal de “touch-screen”, onde tudo pode ser manuseado, literalmente, com os dedos. Essas telas são extremamente sensíveis e, muitas vezes, imprecisas. Passa-se o dedo de tudo o que é jeito nelas e, porque somos seres vivos, fica tudo engordurado.


Fiquei todo bobo com meu smartphone quando soube que poderia usar programas de computador, fotografar, entrar na Internet, passar mensagens, até telefonar.  Fiquei mais bobo ainda quando descobri que ele, dentro do bolso, podia fazer isso tudo sozinho, contra a minha vontade. E não adianta usar bloqueios de tela adicionais porque ele fica irritado e começa a querer ligar pra polícia. E nessa de tenta e não consegue, vai gastando a bateria toda. 

O usuário comum ("usuário comum" parece “aquele que usa drogas simples”) não precisa e não consegue lidar com a infinidade de opções que, por exemplo,  um menu de televisão oferece.   Com muito custo minha mãe consegue ligar, desligar e trocar de canal no enorme controle da sua TV.  Parece um teclado de computador.   O do DVD ela nem se atreve, não sabe nem por onde começa.   O maior problema é que essas pessoas às vezes ficam sem poder utilizar o aparelho porque esbarraram numa tecla e o troço entra em modo AVI-1, HDMI-2 ou algo parecido.  Não adianta desligar e ligar, a tela continua preta e sem som.  Devia ter uma tecla “pânico”, que fizesse tudo voltar ao normal.  E não me venha relativizar o que é o “normal”; afinal, o normal é o normal e você sabe qual o é.
Cheguei a ter cinco controles remotos para poder assistir a uma reles novela.  O sinal da TV a cabo entrava num canal especial do videocassete (!) que passava para o gravador de DVD de mesa que distribuía para as TVs da sala e do quarto. Além disso, o som poderia ser distribuído para caixinhas de um home theater queimado que espalhei pela casa (em estéreo)  a partir do micro-system.  Não entendeu?   Nem eu.  Quando faltava energia ou havia um pique de luz, levava uns dez minutos pra configurar tudo de novo.  Se eu não estivesse em casa, a casa não tinha TV.

Cansei dessa vida, aposentei o videocassete; o gravador de dvd deu pau, não tem mais conserto e não se fabrica mais; coloquei uma pecinha que o moço da casa de antena me vendeu por dois reais na saída da TV a cabo e agora sou uma pessoa feliz que tem apenas três controles.

Quanto à tela de LCD, a que estica a cara de todo mundo, me nego a assisti-la assim.  Se você não sabe, caro amigo, tem um botãozinho no controle remoto que faz a tela ficar normal, ou seja, proporção 4 por 3.  Vamos parar com essa obsessão de ter que encher a tela toda.  Se a imagem não é 16 por 9, mais larga, não sou eu quem vai ficar vendo os artistas todos de cabeça chata só pra encher a tela.  Isso me lembra do povo que, na década de 70, comprava aqueles plásticos coloridos, de gosto muito duvidoso, pra colocar nas TVs preto e branco pra ver a imagem “colorida”.  Sou da opinião de que se a coisa não é, é porque não é, e estamos conversados.

Você sabe o que é ponto de acesso? Blú-tufi? Uai-fai? Blógui? Instagram? Uáti-zápi? O-cacete-a-quatro?  Pois é, depois de ter dado “aulas de computador” por mais de uma década, sou obrigado a fazer cara de paisagem para meus alunos de artes e a aprender tudo com eles.  Pra mim ‘tá rápido demais; estou jogando a toalha. O pior é que estamos só no começo.

Sempre gostei muito de inovações tecnológicas mas acho que está se perdendo a mão. Só queria mesmo era um botão de verdade, daqueles que a gente aperta ou gira e ele faz uma coisa só de cada vez.  Bem devagarinho.

domingo, 22 de setembro de 2013

Em 1985


O primeiro Rock in Rio não foi um grande evento, foi  uma ultrasuperprodução para o mundo que existia àquela época.  Não dá para mensurar.  A construção de uma cidade, a quantidade de estrelas da música envolvidas em um mesmo projeto — desde Woodstock não havia algo parecido no  mundo, muito menos no terceiro mundo do Rio de Janeiro.  Só a vinda de Frank Sinatra, em 1980 e de Rachel Welch, em 1975, tinham causado tanto alvoroço,  numa escala bem menor. Era um mundo de telefone fixo, sem Internet,  de orelhão de ficha, de máquinas de escrever, de cartas manuscritas enviadas pelos Correios, de câmeras analógicas; nem videocassete se usava em casa.  Os videoclipes começavam a surgir. Era o fim da ditadura, a “liberdade” tomava conta de tudo e recebíamos o melhor do “primeiro mundo”.


Na época eu era muito mais duro do que sempre fui e participar de um acontecimento como este era algo inatingível.  Mas aconteceu. 

Um dia, nos corredores da UFRJ surgiu o papo de que estavam contratando universitários para serem balconistas no festival.  Em poucos dias eu, o povo do curso de Belas Artes e meus amigos de Nova Iguaçu que arrastei estávamos indo conhecer a cidade do rock ainda inacabada. Inacreditável.
Durante os dias do evento, pude perceber que o que aparecia na TV era somente um terço ou um quarto das  pessoas que estavam lá, as câmeras não alcançavam, não existia vista aérea, era um mar de gente.  O terreno era tão grande (é onde fica hoje o Projac) que mesmo sendo quadrado e murado, parecia ser redondo, não é exagero, eram 250 km quadrados.  Em alguns pontos, o som chegava nas caixas com tanto atraso que não fazia mais eco, era repetição mesmo.  Descobrimos que os técnicos da Globo não aguentavam mais comer umas quentinhas "brabas" que eles recebiam e resolvemos trocar nossos saquinhos de lanchinho ruim com eles, que trabalhavam atrás do grande palco.  Era uma caminhada de quinze a vinte minutos, muito longe.


E assim passávamos os dias,  andando muito de dez horas da manhã até às quatro da madrugada do dia seguinte.  Na chegada, descíamos do ônibus do lado de fora e éramos escoltados pela guarda montada. Os cavalos com seus cavaleiros, um de frente pro outro, formavam um corredor de duzentos metros pra gente passar enquanto a multidão, de plantão, admirava, impressionada.  Nos sentíamos muito importantes, e éramos.

No quiosque da Pepsi eu era declaradamente discriminado por não ser mauricinho, por ser pobre, não morar nem na zona sul nem na zona Norte e não falar de marcas de tênis, de relógios, de esportes, de viagens nem de faculdades particulares.


Eu não `tava nem aí (mesmo); era de outro mundo, o meu! Tinha chegado até ali pra ser feliz. Fazia parte do excesso de contingente e a escala que seria de quatro horas trabalhando com duas de descanço, se inverteu.  Foi uma festa!  Eu rodava, assistia os shows, carregava meu papelão de estimação onde deitava num canto qualquer pra dormir ou ficar ouvindo o som e depois trabalhava duas horinhas.  Uma vida besta!
 
 
Tudo começava, no início da tarde, quando eu passava na loja da Wella pra “turbinarem” meu cabelo moicano(!) com aquele gel cintilante colorido que eles me aplicavam, gentilmente.  Depois, ia pra beira do palco, no meio do terreno vazio, me juntar a uns gatos pingados pra ver o ensaio de um show qualquer, tipo George Benson, All Jarreau, Queen, James Taylor, Nina Hagen, Yes...   Êta, vida mais ou menos!
Quando os portões eram abertos chegava a dar medo: milhares de pessoas vinham daquela imensidão onde a vista não alcançava e ocupavam todos os espaços, em instantes.  Parecia uma pororoca ou o mar quando retoma a praia de Saí, em Muriqui, de madrugada.

No fim da jornada, não prestávamos pra mais nada, nem pra ir pra casa. O ônibus deixava nossa galera em Madureira, às quatro da manhã, onde tentava-se arrumar uma Kombi, só que acabávamos de carona num caminhão da Comlurb, que despejava a gente em Nilópolis.
Momentos marcantes:

— O primeiro show que assisti, no segundo dia, com Ivan Lins que, além de não cantar bem, estava rouco, mas com um público tão encantado com tudo que brincava como se estivesse num parque: os pais com suas crianças, casais de namorados; pareciam vários balés diferentes ensaiados por figurantes, sem nada ter sido combinado.  Para cada lado que se olhava, uma performance. Foi exatamente assim, enquanto ele cantava “No novo tempo...”.
— O show do Queen, na sexta-feira, a grama já tinha virado um lamaçal fedorento, meus pés dentro de sacos plásticos com lama no meio da canela e Fred Mercuri, que achei que nunca veria ao vivo,  arrebentando a boca do balão.
— Alceu Valença, cantando “Anunciação” e um movimento de plateia inusitado que me arrepia só de lembrar:  o público bem do fundo, onde eu estava, ao ouvir “Tu vens, tu vens...” começou a balançar os braços e isso virou uma onda que foi até a beira do palco, só que aconteceu inexplicavelmente de trás pra frente.
Minha amiga Lúcia me chamou, no último dia, pra levantar e ver o esperado show do Yes, mas não sobrara nada de mim e lá eu fiquei, no papelão, tomando chuva, ouvindo os fogos e eles cantando: “Soon, oh soon...”.  Isso, aos vinte e um anos de idade, é transcendental !
Depois desse, vieram outros festivais mas, como diz o Kid abelha, “os outros são os outros... e só!”

 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Sobre o rádio


           
Para quem vive num tempo de tanta troca de informação é difícil compreender a importância que o rádio já teve na vida do povo.  A formação musical de vários artistas do século XX se deu através deste instrumento poderoso de comunicação que refletia tudo o que se referia à criação humana e que podia ser reproduzido pelo som.


O lá de casa era preto e grande, com uma grade de alumínio na frente. Dava para ouvir, além dos programas nacionais na banda AM, as rádios de ondas curtas e tropicais, com programas da BBC de Londres, programas japoneses, alemães, ingleses, italianos, árabes e portugueses.  Esses tinham o som muito ruim mas eram de longo alcance, vinham direto de seus países.  Depois, na época da Segunda Guerra, um cientista americano descobriu, por acaso, que ondas mais curtas do que estas, as microondas, serviam pra cozinhar.  Na minha infância, acho que só tinha uma rádio FM com música ambiente e som muito bom.

Isso tudo era no tempo em que, para mim, toda a programação acontecia ao vivo; inclusive as músicas. Ainda com três anos de idade, já me preocupava com a complexidade da produção de uma estação de rádio.  Imagine como seria receber Rita Pavone para cantar Datemi un Martello, em seguida, “os” The Beatles e, logo depois, Vanderléia.  Gente, que trabalheira, ainda mais que eles cantavam várias vezes ao dia, sempre igualzinho, um coladinho no outro.  Eu via isso na televisão também. 

Nessa mesma época, o Chacrinha perguntava aos calouros: “solteiro, casado, viúvo ou tico-tico no fubá?”.  O tico-tico no fubá eu até achava que entendia, mas a palavra “solteiro” era intrigante.  Imaginava sempre alguém amarrado num poste em frente às Lojas Americanas de Nova Iguaçu sendo libertado por um sujeito com vontade de fazer justiça.  Este seria o solteiro.  Eles deviam viver em Nova Iguaçu, porque em Belford Roxo, bairro em que morávamos, não tinha essas pessoas que faziam coisas fora do normal.  Isso só em cidade grande.

Essas coisas aconteceram quando eu tinha cerca de três anos.  Eu sei porque, minha irmã Sandra varria o quintal de casa um dia e me perguntou: “— Quantos anos você fez ontem?” Mostrei três dedos. Como ela não me corrigiu, acho que estava certo.  E olha que eu já tinha vivido muita coisa e visto muita televisão até então.

Como, por exemplo, no dia em que o homem pisou na lua. Eu pisava na Terra havia cinco anos e já ficava sozinho na cadeira do barbeiro, perto de casa.  Falei com ele pra cortar meu cabelo rápido porque estava na hora do homem descer na lua, mas não teve jeito.  Só deu pra ver o finalzinho.  Depois, repetiu à tarde. Na rua Francisco Sá, ninguém sabia, mas a ditadura já corria solta e, enquanto isso, o Jornal Hoje começava com umas imagens do sol por trás de árvores ao som de Johnny Mathis cantando Evie. A abertura durava o tempo da música toda e era bonita à beça.

Voltando ao rádio, programas como “A Patrulha da Cidade”, Haroldo de Andrade, Dayse Lucidi, Cidinha Livre, os horóscopos de Omar Cardoso, de Nena Martinez, de Zora Yonara, as rádio-novelas da Rádio Nacional, o “Teatro de Mistério” e muitos outros, foram (e alguns ainda são) a trilha sonora da vida das donas de casa, das empregadas domésticas, dos balconistas, dos vigias noturnos e de todo mundo que não precisa do ouvido pra trabalhar.

Um capítulo a parte das emissoras AM atuais é a rádio MEC, 801 Mhz, ao lado da CBN.  Lá você pode ouvir tudo de bom que o Brasil produziu e produz, de verdade.

Com a disseminação dos aparelhos de TV, hoje muita gente passa o dia ouvindo o que é pra se ver.  Nas rádios, o que se ouve, na maioria das vezes, é muito convencional e chato.